Filme manifesto do 27º Festival Mix Brasil é convocatória para #persistir e lutar contra tempos sombrios

Novembro é um mês muito intenso para os cinéfilos paulistanos. A gente se despede da extensa e deliciosa programação da Mostra Internacional de Cinema e saudamos logo na sequência a chegada da programação do maior evento de diversidade da America Latina, o Festival Mix Brasil. É uma tradição anual atravessar esse mês respirando cinema 24/7.

Mas, cá pra nós, respirar cinema se tornou algo difícil neste cenário atual onde o desmonte da nossa cultura acontece gradativamente, dia a dia, enquanto você que está lendo este texto e eu tentamos seguir minimamente com as nossas vidas num esforço descomunal para manter algum grau de sanidade, harmonia ou, que seja, alguma esperança de que as coisas vão melhorar.

“Viver” esse festival em 2019 é, mais do que nunca, um verdadeiro alento para a alma em meio aos atuais gritos de conservadorismo, cortes de incentivos de obras audiovisuais que entoam censura e aplaudem a patrulha truculenta e criminosa dos nossos corpos. É muito mais do que resistir em meio ao caos generalizado: é, como o próprio tema dessa edição proclama, #persistir!

Filme “Retrato de uma jovem em chamas”

A abertura da 27º edição do festival aconteceu na semana passada no auditório do Ibirapuera. No meu histórico de cinéfilo e frequentador do festival, são dois os grandes momentos desta noite: a exibição (pré-estreia) do filme de abertura, que costuma ser uma produção premiada e muito aguardada pelo público – tivemos o ótimo longa francês “Retrato de uma Jovem em Chamas” e, antes do filme, o meu xodó particular: a apresentação da vinheta do festival, que nada mais é do que a alma da edição.

Com o auditório lotado o que vimos foi, de longe, a vinheta mais poética, profunda e impactante de todas as edições do festival. Foi de trincar os olhos! André Fischer e Josi Geller anunciaram antes: “A vinheta desse ano está diferente – é um curta-metragem, algo que vai mexer com todos vocês”. E, olha: como mexeu, viu!!!

No dia seguinte, ainda com flashs da vinheta na mente, revi a peça em casa, no celular e logo depois no computador. E depois na SmartTV. É um trabalho impecável que não apenas dialoga poeticamente com a essência do festival, com a essência do ser diverso, do ser muitos e ser você mesmo – vou chamar de filme, porque fica mais de acordo com o seu efeito, porque sua realização “transborda” as beiras do “ninguém solta a mão de ninguém”, que tanto entoamos em 2018. Aqui, #persistir é muito mais do que morrer e viver novamente: é sair do transe, é sair da sombra que assola nossa comunidade e recomeçar a luta. Mas dessa vez nós vamos juntos!

Inspirado pelo potente motor do tema e pelas belas imagens da peça, resolvi entrar em contato com a equipe da Vetor Zero, produtora que realizou a façanha de criar essa obra de arte, pra entender melhor como e quem está por trás dessa produção. Falei com Alberto Lopes, o produtor executivo, Pedro Andrade, roteirista e o diretor Marcello Bozzini.

Bastidores da gravação da Vinheta Mix Brasil 2019

“O André me procurou no mês passado. Fomos almoçar e ele comentou sobre as dificuldades para produzir a vinheta desta edição. A Vetor Zero sempre apoiou o festival, mas nesse ano a gente queria muito participar diretamente. É um momento de se alinhar com a resistência da arte em todas as suas frentes”, disse Alberto durante a ligação por Facetime que fizemos na última Quinta-feira.

Bastidores da gravação da Vinheta Mix Brasil 2019

“Foi um ano difícil para todos nós. Não houve dinheiro para produzir o filme. ‘Persistir’ é o que o André faz há anos com o festival e essa edição precisava de uma vinheta que pudesse expressar essa essência, que ecoasse em forma de arte o grito de um povo indignado. Foi um prazer e uma honra poder produzir uma peça tão linda para um evento tão importante e histórico”.

Alberto conta que chamou o diretor Marcello Bozzini para o almoço pensando em lhe dar a tarefa de dirigir o filme. “Conversei com o André e falamos sobre o conceito do filme. Ele nos apresentou o Centro Cultural da Diversidade, o qual ele dirige. Fui visitar o espaço e as ideias foram surgindo ali mesmo. Produzimos tudo em 10 dias. Foram dias intensos, com dedicação extrema de toda a equipe envolvida. Todos ali tinham em comum o objetivo de fazer valer suas vozes”.

Bozzini durante as gravações

Bozzini destacou ainda a pluralidade da produção: “O machismo, a homofobia e qualquer desrespeito à essência de qualquer pessoa é algo que também me atinge como ser humano sensível. Esse trabalho é sobre unir forças. Toda a equipe é MIX: gays, héteros, trans, negros, brancos e toda a figuração, que foi voluntária, é composta por não-atores. Tudo é orgânico, do jeito que é, naturalmente. É preciso ‘ser’ você mesmo pra poder ‘persistir’.

Bastidores da gravação da Vinheta Mix Brasil 2019

“No filme trabalhamos com essa dualidade: ‘como me querem’ e ‘como eu sou’. ‘Como o mundo nos vê’ e ‘como nos vemos no mundo’. Fomos construindo elementos visuais pra isso, com os espelhos, sombras, luzes e a água, que é um elemento de transformação, de cura. No filme, o transbordar é o ponto de ebulição que estamos, que nos transforma e nos revela“, disse Bozzini.

Bastidores da gravação da Vinheta Mix Brasil 2019

Bozzini também relata que produzir o filme foi um processo terapêutico: “Eu acabei desopilando toda a tensão política que absorvi e vivi neste ano. Estávamos em choque – todos os dias temos notícias ruins chegando e minando nossas forças, nos deixando num estado de letargia. Foi um ano horrível para a arte no Brasil em muitos aspectos e eu já vinha acumulando essas tristezas desde o ano passado. Eu tinha que expressar e transformar esse sentimento de persistir em forma de arte. E deu muito certo. Pra mim esse é um filme manifesto. Quando recebi a tarefa de produzir esse filme, o cansaço foi embora: entramos num transe e juntos percebemos que somos mais fortes“.

O roteirista Pedro Andrade

Bozzini teve Pedro Andrade como um grande aliado neste projeto. Pedro é cineasta e roteirista. Ele criou o texto maravilhoso que é apresentado no filme pela bela e feroz voz de Triz, rapper paulista. “Eu queria falar sobre o que as pessoas precisam ouvir nesse momento. O texto funciona como uma convocatória, um chamado para quem estiver vendo, para que estes resistam, persistam no que são, no que acreditam. Para que não deixem que as sombras tomem conta de tudo“.

O roteirista Pedro Andrade

Como realizador gay, Pedro disse ter sofrido muito no período das eleições: “Fazer esse filme foi um processo muito pessoal pra mim. Eu venho #persistindo desde as eleições. Sempre gostei de poesias e sempre escrevi. Senti que era algo necessário nesse momento: vamos pegar todo esse ódio que nos é jogado e devolver em forma de poesia, que é o estado bruto da arte. Vamos devolver esclarecendo, vamos instruir.”

Bastidores da gravação da Vinheta Mix Brasil 2019

Ficou muito claro na conversa que tanto Bozzini quando Pedro tiveram a maravilhosa chance de diluir suas experiências pessoais de #persistir neste filme. E é isso que artistas fazem (e deveriam fazer, principalmente agora): usam suas vozes pra inspirar outras pessoas.

Pra mim, como gay e cinéfilo, o mais legal aqui é ver toda essa arte do #persistir virando cinema, pra ser exibido num festival de cinema, num ano em que o nosso cinema foi atacado e colocado em pauta de diversas formas – no ano em que também fomos boicotados, mas certamente o ano em que o nosso cinema mais brilhou justamente por conta de trabalhos que falam sobre resistência e diversidade. Este filme do Mix Brasil é fruto de tudo o que passamos e de tudo o que nos tornamos de lá pra cá: somos ainda mais fortes agora. E ficaremos ainda muito mais fortes. O melhor momento para criar é agora.

“Nós vamos fazer mais e mais. Nós não vamos parar. É agora que o nosso cinema vai ficar ainda mais rico e forte”, diz o roteirista Pedro Andrade.

Equipe e o diretor do festival André Fischer

Vale enaltecer e deixar aqui a ficha técnica do projeto: cinema é uma arte coletiva, feita por várias mãos, que gera inúmeros empregos e que movimenta a nossa economia. Que venham os novos tempos onde não tenhamos que desenhar o óbvio e encolher as asas da criação.

#PERSISTIREMOS

Ficha Técnica: Vinheta 27º Festival Mix Brasil (2019)

Direção: Marcello Bozzini – Roteiro: Pedro Andrade – Direção de Arte: Rafael Blas – Direção de Fotografia: Vitor Duarte – Ass. de dIreção: Diego Dossa & Camila Ferraz – Estagiária: Ayla Vitoria – Produção: Anderson Boscari – Trilha Sonora: Lou Schimidt / AntFood – Locução: Triz – Produção de Objeto: Betinha Casting: Fernanda Salem – Consultoria de Roteiro: Lia Kulakauskas e Alice Marcone – Produção Executiva: Alberto Lopes, Francisco Puech, Fernando Alcantara – Produtora: Vetor Zero

Por Alan Oliveira

Author: Alan Oliveira

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